quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O que acabei de ler: "Carapintada" - Renato Tapajós






A Odisséia teen
por Luciana A. Penna*

Carapintada, de Renato Tapajós, apresenta ao público teen, num roteiro impecável, cenas da ditadura. Os tiros e perseguições com que se constrói a trama inscrevem o livro na tradição do romance de aventura, forma mais que perfeita da literatura juvenil. Do começo ao fim, a ação dá o tom; a narrativa, no entanto, não permanece a mesma, o que parece sugerir dois momentos distintos do livro, aos quais talvez correspondam duas concepções de história: uma em que o personagem está como que num jogo de imagens, pelas quais passa impune; outra em que a história é condição de sua transformação. Passemos a ela.

No caminho para casa, após uma manifestação pró impeachment, Rodrigo sente-se meio zonzo; depois de algum estranhamento, percebe que está em 1969 e se vê confundido com um secundarista da época em meio a um resgate a uma militante torturada, presa na Santa Casa. Embora neste momento o estranhamento inicial já tenha passado, é como se sua inserção na história não fosse fato. Todo o medo que sente durante a cena é afastado pela idéia de que, como não pertence àquele tempo, nada nem mesmo um tiro - pode atingi-lo. É como se ele acompanhasse uma narrativa de vídeo-game, em que sua realidade fosse apenas virtual e os tiros, imagens de balas que acertam personagens que são também apenas imagens.

Após o resgate, contudo, quando vê a militante torturada e ouve sua história, tudo muda. Diante da brutalidade da cena, é como se tivesse sido atingido pela surra dos torturadores e começasse a encarar a narrativa como uma história de carne e osso. Seja como for, é a partir deste momento que perde a sensação de distância em relação àquele passado e começa a se sentir cada vez mais próximo dos personagens, até o ponto em que, da condição de espectador de uma história que não o ameaça, passa a sentir medo dos tiros e vontade de intervir. É também a partir deste momento que começa a se lembrar das conversas dos pais a respeito daqueles acontecimentos e a compará-los com os de sua época. Assim permanece até as últimas cenas e finalmente volta ao presente, mudado: "De algum modo, sabia que havia para ele um lugar no mundo".

Como se vê, os dois momentos que compõem a narrativa do que se passa em 1969 estão contidos, por sua vez, em outra narrativa, cujo tema é um dos mais antigos da literatura ocidental: o do regresso ao lar. Guardadas as devidas proporções, tal como Ulisses na Odisséia, Rodrigo inicia suas aventuras no caminho de volta para casa. Em Carapintada, no entanto, o expatriamento de quem não consegue regressar é a própria condição do regresso, ou seja: por ter visitado o passado, o personagem pôde voltar ao presente e encontrar aí "um lugar no mundo", o que sugere um otimismo em relação à História que talvez seja inverossímil nos dias de hoje. Haverá dialética (pelo menos aquela em que o livro acredita, de matriz hegeliana) no mundo dos carapintadas que estiveram na manifestação pró-impeachment? Quem poderá responder é o leitor: se Carapintada exercer sobre ele o mesmo efeito que a história das torturas exerceu sobre Rodrigo, certamente poderá acreditar numa história que não seja apenas lugar de imagens.

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*Luciana A. Penna é mestre em Literatura Brasileira.